A (in)eficiência das normas de processo penal e o caso da Boate Kiss

Existem duas questões de destaque que envolvem o julgamento de casos criminais com grande apelo midiático no Brasil. Em primeiro lugar, os sujeitos processuais em maior desvantagem na relação jurídica Juiz-acusação-acusado são julgados antecipadamente pela mídia que vez ou outra coopera negativamente para a exasperação da reprimenda final ou para o fundamento da prisão processual preventiva pautado na famigerada ordem pública. Dos dois pontos que quero destacar, esse é menos importante quando comparado com a eficiência (ou ineficiência) da resposta de um processo criminal composto por diversos subterfúgios que encontram respaldo nos direitos e garantias fundamentais daquele que é perseguido criminalmente pelo Estado.

É certo que as normas de processo penal foram criadas e seguem evoluindo para permitir que o acusado seja julgado através de um julgamento justo, fundamentado por normas bem delimitadas. Só que as “regras do jogo” (sinônimo que usarei para me referir às normas de processo penal) estão inviabilizando ou muito adiando o término deste jogo (julgamento), entregando às vítimas e suas famílias, resposta no mínimo insatisfatória, sobretudo nestes casos de grande repercussão. Vejamos.

No dia 27 de janeiro de 2013 na cidade de Santa Maria – RS, a boate Kiss sediou uma festa universitária onde apresentava-se um artista que fazia uso de artefatos pirotécnicos. Durante a apresentação e com disparos de tais artefatos, o teto do local foi atingido dando início a um incêndio que vitimou 242 jovens, deixando outros 600 feridos. Junto com o luto dos familiares das vítimas, vem a necessária responsabilização pelo ocorrido que obrigatoriamente vai desaguar em um procedimento de natureza criminal, uma vez que as mortes ocorreram em decorrência de uma conduta, conduta esta que precisa ser avaliada segundo as normas de processo penal/regras do jogo. Em linhas gerais, as perguntas que devem ser respondidas com o julgamento são as seguintes: Os 242 óbitos foram consequência de um ato? Quem foi o autor deste ato? Este ato é definido como crime? Qual a pena deste crime? Todas estas questões devem ser sanadas dentro do processo criminal, criado, como já acentuei, para proporcionar um julgamento justo.

A razoável duração do processo prevista no art. 5º da Constituição Federal de 1988 e a especialidade do caso da boate Kiss tem permitido que outra pergunta reverbere entre os operadores do direito, na mídia e na sociedade de maneira geral, mais de 10 anos após os acontecimentos e nenhuma resposta definitiva: é justo que os agentes sejam responsabilizados criminalmente em vinte, trinta ou quarenta anos após a ocorrência dos fatos? O conjunto de normas que guia o julgamento e a sanção destas condutas, atreladas aos direitos e garantias fundamentais dos acusados é eficiente somente para os mesmos, deixando a sensação de impunidade para os familiares das vítimas, alimentando a descredibilidade no sistema de justiça criminal como um todo.

Após condenação capitaneada pela 1ª Vara do Júri de Porto Alegre onde os sócios da boate e membros da banda musical que se apresentava foram criminalmente condenados em penas que variam de 18 a 23 anos de reclusão, a defesa dos acusados usando de artifícios previstos nas regras do jogo, requereu a anulação do julgamento, o que foi deferido pelo Superior Tribunal de Justiça, devendo ocorrer um julgamento novo, que já tem data marcada: 26 de fevereiro de 2024.

Demonstro que essa decisão de anular um julgamento dos mais complexos representa a eficiência das normas de processo penal no Brasil. Por outro lado e com o mesmo rigor, conclui-se ineficiente um processo que depois de tanto tempo não entregou resposta definitiva aos familiares das vítimas e à própria sociedade. Contrariando o preceito constitucional da razoável duração do processo, pode ser que estejamos ainda no começo dos capítulos que ainda estão por ser escritos no caso da boate Kiss.

 

Paulo Borges Filho
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Coimbra. Advogado e sócio fundador do Pimentel, Ribeiro & Borges Advocacia.

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